quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Prólogo

A solidão atormentava-o mais que a desilusão. Não gostava do cheiro das ruas à noite, dos morcegos a passar nos candeeiros e do som da sua respiração acelerada. Era como ser perseguido sem saber se realmente o é. O escuro, mais que o nevoeiro, enchia-o do instinto de sobrevivência. Se a sua vida corria perigo era de noite. Se morresse assassinado seria numa noite de nevoeiro.
Do outro lado da rua, um sujeito seguia o nosso atormentado personagem. Era o costume. O normal, trabalho. Não o conhecia, porventura seria boa pessoa mas não lhe competia a si decidir. Alguém já o havia feito. Agora executaria.
A rua por si só era indistinguível. E nessa noite não se via um passo à frente dos pés. Não se lhe reconheciam os edifícios românticos. As entradas grandiosas, os candeeiros retirados dum filme de Vasco Santana. Nenhum dos dois sujeitos parecia reparar nas ruas transversais que constantemente cortava a em que seguiam.
Ele seguia atormentado e perseguido. O nevoeiro havia-lhe molhado a cara, tinha as roupas húmidas. Era gordo, facilmente comparado a um sapo. Passava por mais velho e burro. Perspicaz e consciente, sabia ler qualquer pessoa que lhe atravessava o curso. Usava óculos antigos, grandes, de fundo de garrafa. Tinha as palmas das mãos escorregadias do suor, dificultando-lhe o segurar do chapéu-de-chuva.
O perseguidor era alto, quadrado, olhos azuis e cabelo ausente. Usava gorro preto, sobretudo preto, calças pretas, luvas pretas e calçado preto. Trazia no bolso uma arma preta e usava, para estas circunstâncias um espírito preto.
Trazia tudo planeado. Era-lhe escusado seguir a presa. Sabia que se dirigia para casa. Havia-o estudado. Mas o seguro morreu de velho e é bom estar preparado para qualquer eventualidade. Este trabalho iria ser bem recompensado, e só por isso dispensava qualquer desleixo.
Encontrou o prédio onde morava pelo bar que se encontra aberto toda noite. Demasiado enfeitado com luzes de néon, era um bom ponto de referência. Talvez um dia ainda entraria no bar e usufruiria dos prazeres terrenos que o estabelecimento oferecia. Subiu até ao seu andar, reparou que o vizinho não havia chegado a casa. Era estranho, mas reparava sempre na correspondência por abrir, na posição dos tapetes e nas luzes usualmente produzidas. O vizinho não era homem de hábitos mas de rotina. Fazia sempre o mesmo. Chegava a casa, ligava a televisão e fingia tomar banho. Ao por a chave na porta reparou num vulto que agora subia as escadas, o vizinho acabara de chegar.
Era agora. A presa, nenhuma das suas vítimas tinha nome, apenas uma cara, tornava tudo mais fácil, chegara a casa, abrira a porta. Altura para simular o suicídio. Ele reconhecera-o, facilitava a intrusão no covil alheio. Conversa de circunstância e convida-o para entrar. Tira a arma, calma e serenamente, adiciona-lhe o silenciador e encosta-a a uma das têmporas. Deixou a arma na mão do mesmo lado da têmpora e disse para si mesmo:
- Altura ideal para um banho.
Entrou em casa, tomou banho, comeu uma sandes, bebeu vinho. Arrumou as malas, retirou da gaveta o bilhete de regresso a casa e deixou o apartamento vazio.
A presa ficara. Chegara ao destino.