Os dias acabam e começam, começam e acabam, sem que ninguém nos pergunte se queremos que isto suceda.
O embrulho era perfeito. Tinha as medidas exactas. A forma e peso que imaginara para o novo carro xpto que todos os colegas iriam ter. Também teria! E excitação não cabia no se pequeno corpo. Não podia esconder mais a felicidade que sentia por saber que lhe ofereceriam o presente certo. Seria a cereja no topo de um bolo seco, sem recheio. Ao menos teria a cereja. Ao menos não se esqueceram do meu pedido.
Descalço – como na canção de natal – desce as escadas a uma velocidade supersónica, uma aterragem no limiar da segurança impede que ele caia, mande com a cabeça na esquina da porta e não só não veja o presente, como também não veria muito mais coisas o resto da vida. É o destino do miúdo ser desiludido mais uma vez. Abre o papel do embrulho, melhor, rasga, com toda a ferocidade que lhe é permitida em tão tenra idade. Um telescópio. Quer dizer, ele não sabia o que aquilo era. Mais tarde aprendeu a dar-lhe o nome, hoje era apenas a personificação de mais uma seta cravada no seu pequeno coração.
O calmo e perseverante pai não desistiu, não cedeu face à birra. Não gosto mais de ti. Deixa-me. Não falo mais para ti. Levou-o, arrastado (também é leve) ao à varanda do quarto do pequenote. Montou o telescópio. Disse-lhe para espreitar pelo sítio devido. Pediu ajuda para as últimas afinações do tripé. O garoto nunca fora tão feliz. O pai a pedir a sua ajuda. Importante. Teimoso e intimidado por tamanho aparato, espreita a medo. Não vê nada. Um pai também não sabe tudo, faltava tirar o plástico que protege a parte da frente da lente. Agora sim. Via as estrelas com que adormecia todos os dias muito maiores. E ele a pensar que elas eram do tamanho dos cereais. Afinal são muito maiores. Queria ver mais, aumentou a gradação – por instrução do pai – mas deixou de ver.
“Nunca te aproximes demasiado” - advertiu o pai.