segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Bolo

O bolo rainha é apenas bolo rei sem fruta cristalisada, como podemos pagar mai por uma coisa que só tem menos coisas que a outra?

Esperava-o uma solidão imensa, feita de nadas e ninguém. Não era o que desejava, mas era o que de melhor poderia ter. Sozinho, acompanhando a multidão de gente que segue com ele pelas ruas de uma qualquer cidade. A chuva cairá sempre, molhando tolos, aqueles que seguem a pé. Deambulando pelas montras apelativas, olha para todos os que se cruzam mas não vê e não conhece ninguém.
Mas agora permanece acompanhado de silêncio, no meio da gritaria dos seus pensamentos, junto da panóplia das suas personagens. Vive indeciso perante a escolha que o levará ao seu inalterável destino, sabendo que ambas o levarão, com mais ou menos curvas, ao fim de uma estrada qualquer. A do meio. A hipótese do meio. Afasta o silêncio que te acompanha e segue sozinho o teu caminho. Sobe sem balanço ou empurrão, chegarás depois de todos os outros ao fim do caminho. Durarás mais tempo no caminho.

sábado, 27 de dezembro de 2008

pain in the ass

Longe da vista ficam os dedos mindinhos dos pés e a tijoleira é usada nas paredes por ser mais fácil de limpar.

Forçado a entrar por nada que fosse, recusou o ímpeto mas entrou de seguida. Olhou, viu, observou tudo, gravou tudo na memória, pois seria a prova de que realmente teria acontecido. Ali estava ela, deitada de pé. Os pés estavam deitados, posição horizontal, quando o corpo se deita os pés ficam de pé – coisa engraçada, esta. Há muito se conheciam, tempo que não voltaria a trás para que ele o ela pudessem refazer uma acção mal conseguida. Tudo se resumia ao encontro de dois estranhos numa casa estranha em condições de filme de Hollywood. Outrora dividido entre duas flores. Não saberia qual levar, nunca. Uma daria com certeza resultados, mas eram vagos e ténues. Porque não experimentar outra que pudesse trazer de volta a viva paixão que nunca chegou a florir de dentro de um deles, pelo menos. Mas nesta última, com nada garantido, e tanto a perder, era preferível jogar no Euromilhões.
Com o estômago nas mãos e o coração nos pés, sentou-se ao seu lado, que por cortesia lhe fora oferecido. Bebeu devagar, gole de galinha, ao contrário do que era habitual. Não poderia fazer figura fraca. Quem sabe quando a voltaria a ver? Em que circunstâncias? Não tinha o que era necessário, definitivamente, um fraco. Só um fraco deixaria escapar oportunidades, sinais que só são deslindados, depois, quando relembrados. Ou então tudo isso não passou duma vaga tentativa de fazer durar a verde esperança num relvado amarelo de geada.
Nunca se sabe com agir em duas posições extremistas, o meio-termo, preferível, mas não acessível, é complicado de vislumbrar entre a panóplia de possibilidades deitadas fora por mim, por ele, por qualquer um em qualquer situação. Preferível, mas inacessível.
Falaram, riram, conversaram, como velhos amigos que, com ânsia, desvendam toda a sua vida em minutos escassos de conversa. Despediram-se, beijou-a na cara, virou costas e foi. Instantaneamente se arrependeu, queria voltar a tocar à campainha, virar as pernas, os pés deitados, mas estaria a ser um verdadeiro pain in the ass.
Como as borbulhas que nascem no canto da boca.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

capítulo III

Quem não se emociona com uma criança? Uma com olhos azuis, numa fotografia, de publicidade, de uma qualquer loja de roupa para crianças. E ver crianças a escolher a própria roupa – a vaidade, nas crianças é engraçada – assim como qualquer outro pecado mortal. Todos nos emocionamos, eu inclusive, mas ele não. Figura destoante dum cenário, figurino que passou no casting sem supervisão. Tudo isto para dizer que não estava a fazer nada, e como eu também não estava a nada fazer, e observava-o. Ele pegava e pousava roupa, esperava qualquer coisa.
Esperava aquele avô que, porventura, comprava uma prenda para um neto. Devia ser cego, ou sofrer de uma outra qualquer condicionante que lhe dificultava a visão. Intrigado com tal personagem que escolhia, também, a roupa, desliguei do outro autor, de forma a concentrar-me em pleno no avô.
Era cego, o pobre coitado, mas um cego cheio de massa, provavelmente era cliente habitual, as empregadas conheciam-no, usava uma bengala dourada. Pouco rico era.
O outro, frio, no frio, segui-o quando este saiu, e eu também, já agora porque não?
Lembro-me de ele vendar o cego avô. Esse, que se fosse realmente cego, se passaria a sentir normal, privado de um sentido que não tinha, com esse ponto favorável, uma pessoa que alguém pensava que era possuidora da arte de ver, mas que afinal só consegue o resto tudo muito mais.
Mas ele não era cego e como era óbvio. A um cego pouco importaria uma bengala dourada, dar-se bem com as melhores empregadas – e não falo das mais eficientes - não era cego. Até veria muito bem, melhor que eu.
Eu ia tão comovido com tal situação paradoxal, que não vi o sorriso cúmplice de quem quer ser levado, forçado apenas pelo papel que representa na trama. Não vi.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Capitulo I

Acordou. Outra vez suado. Outra vez assustado, numa clareira de lençóis. Era sempre assim. Desde que tinha obtido aquele recado de um moço que não era dele. Sonha todos os dias, a mulher dorme no sofá. O sonho - sabe ele - é o retrato que ele fez de um livro em que na personagem se achara a si.
Foi aquela ameaça, a consciência do mundo todo em uma pessoa que a leva à loucura no instante seguinte, imediato.
Uma hora, a duração do sonho, depois de voltar a adormecer acordou novamente, da mesma forma.
Eram duas da manhã de uma noite para o lixo. Em que o descanso necessário não viria sem ele ter consciência disso, mas virá por um café, dois, três.
Levantou-se para escrever. Escrever alivia. E ele iria escrever e descrever o pesadelo sob a forma de um sonho premonitório. Começaria pela sinestesia de flashes que invadiam um sonho normal. O encavacamento de dois ou mais pensamentos encadeados, mostrados tipo novela, mudando de actores e cenários no meio de um clímax para manter o suspense. Depois diria que sentia medo, porque por mais que não sejamos nós que estamos no livro, os pensamentos são de quem escreve, por isso têm, todas as personagens, um pouco de nós, de andar sozinho numa rua escura e que essa rua era a mais assustadora de todas.

***
A mulher que dorme no sofá na altura dos sonhos é advogada. Trabalha em casa e no escritório. Muito requisitada. Assim, precisava de dormir por pouco que fosse. E se se mantivesse a dormir mais ele não o iria conseguir.
-Tenho de trabalhar, não é nada do que as minhas amigas dizem – pensa ela todos os dias.
Adormece a pensar nele. No arguido que a contratou há muitos anos, e que há muitos anos a levou a apaixonar-se.