terça-feira, 30 de março de 2010

Tosco - história de uma quaresma

“Ó meu anjo da guarda, faz-me voltar a sonhar. Faz-me ser astronauta e voar”

Na minha cabeça existe um moço. Um moço muito pacato e reservado. Um pouco diferente da minha pessoa e, como eu também existo na minha cabeça, estávamos os dois na mesma sala, por assim dizer. Eu não sou pessoa de ficar calada, mas ele não se importava de permanecer em silêncio. Deste modo, era um impasse complicado de resolver. Por um lado, não queria ferir susceptibilidades, mas por outro, não é por mal, contudo incomoda-me que estranhos habitem a minha cabeça sem me dar satisfações.
Então, fui-me a ele com toda a força, cheio de coragem, feito forcado, e disparei um olá. Um olá tosco, espelho de mim, mas ainda assim um olá. Mas eu posso parecer parvo fora da minha cabeça, mas dentro dela tomo todas as precauções. Ia preparado para a revolta, a indignação, levava argumentos para sustentar a minha impertinência. Assim, vira-se ele, com aquela cara desconhecida e reponde-me um bruto olá simpático. Ai o maldito! Ficamos amigos nesse dia.
É certo que habitava a minha cabeça, mas podia ter sido mal-educado, com pessoas estranhas nunca se sabe. As pessoas estranhas, no dia-a-dia fora da minha cabeça, metem-me algum receio e enchem-me de reservas. Fico com vergonha. Às vezes nem digo bom dia com medo que não me respondam e que seja ignorado. É difícil suportar o sentimento correspondente ao acto de ignorar, eu diria ignoração mas o Word não aceita. As pessoas passam com tanta pressa que não lhe podemos extrair os motivos que levam a tal ato. Acho, até, que é por causa destes comportamentos que o país não se segura direito. Coitado, também já é velho, mas conheço velhos bem mais velhos e bem mais rijos. O problema de Portugal é que é pouco simpático com as pessoas, e as pessoas deixam de ser simpáticas com ele, e a minha avó sempre me disse que as pessoas más morrem cedo. E pronto.
Olhem, mas fiquei deveras surpreendido com o moço que veio habitar dentro da minha cabeça. Um rapaz simpático. Cheio de reforço positivo para dar. Como só eu moro na minha cabeça, com ele agora, recebo-o todo, e sou muito mais feliz. Gostava de ser mais parecido com ele. Embora esteja sempre vestido com a mesma roupa e nunca o tenha visto a tomar banho. Se calhar a culpa também é minha, a minha cabeça não deve oferecer grandes condições para uma pessoa morar, se não, com tanta gente sem casa, já estaria mais ocupada.
Assim, e por força das circunstancias fiz obras na minha cabeça. Foi um dinheirão! Os empreiteiros não são pessoas muito honestas, comentem eu com o moço, agora meu companheiro. Ele disse que não me preocupasse, que quanto mais dinheiro temos, com menos cabeça ficamos, e que é preferível gastar dinheiro para aumentar o espaço. Assim cabe mais gente.
O problema da minha cabeça, e de muitas imagino eu, para meu sossego, é a sujidade. Não é limpa. Eu não tenho muito tempo, até porque no tempo que tenho, tenho de arrumar o quarto, e nunca conheci uma mulher-a-dias para cabeças em conta. É tudo muito caro hoje em dia. No entanto, e como já não era apenas eu a morar no cubículo a que chamo cabeça, mas que poderia chamar fogão, dediquei-me à limpeza. E o resultado não está nada mal. Na verdade, está muito mais agradável que o meu quarto, só lhe falta a internet.

A quaresma é isto mesmo, é reparamos que não estamos sozinhos, nunca, e que devemos cuidar de nós e dos nossos pensamentos, para que a nossa existência, e a daqueles que connosco interagem seja, todos os dias, um pouco melhor.

terça-feira, 2 de março de 2010

bonança rima com esperança

Depois da tempestade vem a bonança, até entre aqueles que se juraram inimigos eternos.


Pela primeira vez em algum tempo fiquei sem luz. Sem electricidade. Sem televisão, sem rádio, sem luz, mas luz já tinha dito. Vi-me, então, confrontado com algo que estranhamente adormecera no mais profundo vazio da minha alma. O que posso eu fazer quando não há nada para fazer? É superficial, eu sei. Mas, ainda assim, consumiu-me o espírito durante o apagão, mantendo-me ocupado.

Os meus pensamentos estavam ocupados com a pergunta superficial a que decidi ocupar o meu tempo, mas os meus gestos e emoções continuavam apontados para nenhures, um lugar que nem conseguia vislumbrar. A minha mãe aproximou-se e falei com ela. Lembrei-me de como pensava nela, e como ficaria triste por me ver longe durante a semana, tinha a presunção de ser um dos pilares da família, uma das suas peças chaves. Estava profundamente enganado. A família é que constitui o meu grande pilar. Posso ter o maior sucesso, um inimaginável (assim não tenho de dar um exemplo), se não tiver ninguém que fique orgulhoso por mim, ninguém que me congratule, não me servirá de nada. E nesse momento, durante o apagão que a minha aldeia sofreu, fez-se luz na minha alma. Percebi exactamente quais tinham sido as minhas direcções até agora, quais as motivações. Percebi que nada do que fiz ou farei pode ser separado dos meus pais e do meu irmão, dos meus tios e primos, porque eles são a minha vida, fizeram a minha vida, construíram-na, bloco por bloco, escolhendo a receita do cimento, com mais ou menos areia, eles tomaram essas decisões quando eu não as podia tomar. Assim, sem mais nem menos, vi-me liberto na prisão que se tinha transformado a minha casa às escuras.

Libertei-me do peso da responsabilidade, cheio da irresponsabilidade característica da fase que atravesso, não tomando a consciência que um muro pode até ter os alicerces feitos de betão, mas se o sujeitamos a uma guerra fria ele não resiste à pressão da sociedade. Então, passou tudo a depender de mim, como uma corrida de estafetas, que a minha equipa fez no primeiro lugar e agora esperava que eu cortasse a meta para nos podermos sagrar campeões.

Custa-me escrever sobre mim, sabendo que, pelo menos algumas pessoas que me conhecem irão ler o texto. Custa-me escrever quando necessito de o fazer, e hoje necessitei, depois de muitos anos. Anos e anos a escrever por puro gozo de o fazer. Escrever para ver a reacção dos outros perante assuntos improváveis, finais impossíveis ou conclusões estúpidas. Hoje, depois de muitos anos, voltei a escrever de mim.


Encontrei-me no fundo de um poço que era meu, estava no meu jardim,

Não estava lá ninguém comigo,

Senti-me sozinho.

Então neguei o lápis e a caneta,

E escrevi directamente no computador.

Pus nas palavras o meu sofrimento,

E construi com elas a minha escada.

Olhei para trás,

fiz a promessa de não mais voltar,

só para deixar a minha alma satisfeita,

e disse até já ao musgo que constituía o fundo daquele poço.

Até que aconteça outra vez.

O sol brilha mais a quem vive de noite,

Trata-se apenas de outra conclusão estúpida.