domingo, 31 de agosto de 2008

dádiva

- Obrigado – disse ela com um sorriso surpreendido.
Foram das palavras mais importantes que já ouvira. Obrigado. Nesse momento não foi tanto o dar mas o receber. Não estaria em causa o dar, porque ela a merecia. Tão bonita, mas não sorria, não estava triste, nada disso, nem ele o poderia dizer, mas sentiu aquele aperto. Seria ela a receptora, e o obrigado compensou todo o esforço de arrancar a coragem do fundo do ser. Ficou constrangido, envergonhado, ocorreu-lhe que ela pensasse que ele era um qualquer sádico, ou um mirone que já a seguira desde o início da sua estadia ali, mas nada disso importa porque não a voltaria a ver. E ela recebeu a rosa, e guardou-a.
A praça, a musica a confusão. Todos os bares e restaurantes com diferentes músicas que se misturam criando um divertido efeito sonoro aos transeuntes. A animação natural de quem já bebeu álcool suficiente para desinibir, mas ainda não para cair.
Ele ia contagiado por esse ambiente. Ele estava contente. Quando vê uma rosa no chão. Uma rosa. Quem a pôs no chão não imaginava o poder que pode ter uma rosa. Pode mudar uma vida. Pode aumentar o ego do seu receptor de forma exponencial. E o dele também. No fim já ele não sabia se deveria ter sido ele a agradecer.

a bonança da tempestade

- Acabou – disse ele com um estado de espírito similar ao da chuva que se fazia sentir lá fora.
- Deixa-me explicar-te – rogou, suplicou e pediu ela, tudo isso, porém, continuava a não surtir efeito.
De repente param. A tempestade que se fazia sentir impedia-os de continuar, era demasiado perigoso. Ele decide ir a pé. Qualquer coisa seria melhor que ficar ali a respirar o mesmo ar que ela, a ver as mesmas coisas e a olhar para ela.
A tempestade era enorme. Os telhados há muito que se despregaram, as copas das árvores batiam no chão, vergadas pelo vento, criando um efeito extremamente cómico e do qual todas as personagens desta história estavam alienadas.
Ela sai também ignorando os avisos do motorista, afinal tinha sido ele a desmascara-la.

***
Ele entrara primeiro no autocarro. Pagara o bilhete e sentara-se à espera que ela chegasse. Tinham combinado irem juntos para casa. O carro dele havia avariado.
- O costume? – Perguntou, inocentemente, o motorista à cara familiar da mulher que acabara de entrar
- Não, hoje vou para casa.

***

Por mais que ela rogasse, gritasse e berrasse ele não a iria ouvir. Não só pelo barulho do vento, mas também pela humilhação de saber como soube. Ela veio atrás dele, sempre a berrar, a gritar que parasse. Ao alcança-lo, grita-lhe ao ouvido as suas desculpas e ele sussurra-lhe:
- Não vás para casa, não hoje, não nunca.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Todos os rebeldes somos nós

A rebeldia para uns é a incompreensão para outros. Nós somos todos rebeldes sob um certo ponto de vista, não o nosso, nem sempre o dos nossos pais, talvez dos avós.

A rebeldia caracteriza-se por fazermos algo que alguém não quer seja feito. Somos rebeldes quando saímos de casa, quando nos despimos num local público, ou, simplesmente, quando pomos a língua de fora aos nossos pais.

Somos rebeldes porque vemos os morangos com açúcar e somos rebeldes por não os ver.
O que eu quero dizer é que podemos ser rebeldes por fazer qualquer coisa, depende de quem julga o que fazemos. Sim. Há sempre alguém que julga o que fazemos. Há sempre uma pessoa na rua que passa e vê a roupa que trazemos, vê o beijo de despedida que damos. Há sempre alguém que se julga menos rebelde que nós.

Há sempre alguém que quer curar a nossa rebeldia.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

tudo isto só para ter um texto grande

Fico, na maioria das vezes, a olhar para o meu esplendoroso teclado. Vêm muitas coisas à cabeça, tipo brainstorm: melgas, moscas, a esquina duma estante que tenho atrás de mim, e o candeeiro (isto quando me levanto). O certo é que hoje aconteceu o mesmo, mas como eu queria escrever por ser o meu dia de folga, escrevo na mesma.
Em certos dias ponho-me a pensar em questões filosóficas, coisas da ociosidade, tipo o que é que é certo e errado, quem o define, porque é que branco é branco e não preto e por último será que é este ano que o Benfica é campeão?
Quando, às duas e meia da manhã, chego ao trabalho, ocupo a minha mente com cálculos mentais, coisas relacionadas com o meu posto, e que servem par ir treinando e para me manter acordado.
Digamos que este texto é quase de carácter obrigatório, tipo composições na escola, por isso não tem qualquer moralismo, simplicidade a esconder sentimentos especiais ou beleza literária.
Se o Quique Flores tiver em conta a matreirice das equipas mais pequenas que só jogam em contra-ataque, vai ter sucesso. Até porque tem um nome ospicioso, Flores, podia ser Lenços Brancos…
As dores de furar uma gengiva com um palito são realmente incómodas. Evitem usar palitos em público, alguém vos pode mandar um murro, e com o palito aleijam-se seriamente em algum sítio. Os dentistas é que ganham.

sábado, 16 de agosto de 2008

episódios

Vontade? Não. Apenas não gostava de malandros. Queria que todos trabalhassem, e trabalhassem bem. Porquê? Para ele próprio poder malandrar.

Eles correm, nós corremos e ela também corre. Principalmente ela também corre. Devia ter desconfiado. Nada cai do céu, e se cai destrói-se na aterragem.
Eu era, apenas, um estafeta. O meu avô foi estafeta, e o meu pai também. Andavam de bicicleta e motorizada, eu de carro. Com o treino da bicicleta o meu avô tinha uma forma física extraordinária, durou mais anos que muitos esperam durar. O meu pai morreu num acidente rodoviário, ia sem capacete.
A profissão, hoje, é muito mais segura e concorrida. Os carros não são os de antigamente. São bombas. Mas é mais exigente, nada pode passar para fora. Todos andam á caça de clientes, de possíveis formas de se aniquilarem mutuamente.
Quando as companhias de entregas se juntam, que neste momento é o meu caso, geralmente nenhuma consegue o que quer, mas fazem muitos estragos. São empresas de entregas, sabem de toda a gente, sabem ir a todo o lado e sabem onde fica tudo.
Eu queria uma vida menos monótona, menos rotineira, e aqui a tenho. Que coisa para se desejar! Agora é o bom e o bonito, juntos a correr atrás de mim. O bom vem de calças e camisa, acho que até trás um chapéu. O bonito vem vestido à galã que Hollywood (há coisas que nunca mudam). Até que ouço gritar por polícia atrás de mim e vejo o bom a prender o bonito. E assim foi. Ela vinha atrás, isto quando eu lhe pedi que cuidasse do meu filho, nosso filho. Porra! Tem de ser sempre tão teimosa?
Os tempos foram passados, basicamente passados, uns bem outros mal. Passados bem e mal. Até que o tempo acabou.
fim

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

trabalho

O barulho ensurdecedor do seu normal funcionamento. A janela aberta. oportunidades para ver o mundo lá fora, para sentir o mundo lá fora. Mas vai demasiado penetrado na leitura para perceber o que se passa à sua volta.

O meu avô era igual ao meu pai, segundo ele mesmo, mas com a diferença de que teve a oportunidade de mudar depois de velho. O meu pai não teve essa hipótese. Morreu cedo, muito cedo. Fruto da vida que levava, que o meu avô levava, e que eu também levo. Levava, espero eu. O meu avô não educou o meu pai, educou-me a mim. E esse salto nas gerações teve reflexos - acredito eu - na minha vida e na dele. O meu avô foi o único patriarca da nossa família que não padeceu à profissão. Todos os outros sucumbiram, excepto eu, ainda.
A profissão da nosso família é tipo uma praga que nos segue para onde quer que vamos, é um vírus introduzido à nascença.
O velhote bem que tentou levar-me a fugir disso, tanto que eu queria fugir disso, mas apenas me tornei num executante evoluído e não inadaptado, como era o meu desejo.
Há uns tempos ganhei coragem e renunciei à minha profissão. Ganhara o suficiente para uma vida desafogada. E queria ter a certeza que teria tempo para viver essa vida. Muito desta decisão parte da introdução na minha vida do meu filho.
Hoje faço ao meu filho o que o meu avô me fez a mim. Educo-o. Será a melhor forma? Ninguém sabe, nunca ninguém soube.
A Ana é a mulher da minha vida.
Tenho andado com a impressão de não estarmos sozinhos nesta paisagem desolada. Mas nós nunca estamos sozinhos.
to be something