quinta-feira, 8 de abril de 2010

amor fatal

Look how they shine for you.


Esta história, esta magnífica história é uma triste história.


Tudo começou num dia que não sei especificar. Eles olharam-se, um cumprimentando o outro. Um deles ostentava um daqueles convites óbvios, sedução pura. Para quem olha de fora é desprezível, mas para eles foi o começo de uma linda história de amor impossível.


Comecemos, então, por apresentar as personagens. Ele era um rapaz igual aos outros, vestia calças e t-shirt com desenhos. Sapatilhas e meias até aos calcanhares. Andava na escola, tinha apenas uns pelitos na cara: motivo para se orgulhar ao espelho. Vivia com a mãe e o irmão. Ambos mais velhos. O irmão uns trinta anos e a mãe apenas dois meses. Sim, é estranho, mas foi assim que me contaram, assim contarei. Reflexões (?), deixarei para quem as souber fazer. Eram abonados mais ou menos, o certo é dizer que não eram abonados de todo. Como sempre acontece nestes casos, viviam de forma humilde e cabeça erguida perante os ventos e chuvas que lhe levavam a casa sempre. Faziam outra. Esta introdução serve apenas para enfatizar os sacrifícios mais à frente explicados.

O outro personagem, tomo, eu, a liberdade de o chamar assim, não é homem. Nem mulher. É, sim, um destruidor de lares, de vidas. Uma quimera que engana até a mente mais desperta. Ostentava a melhor publicidade de todas: o uso dos amigos, a moda. Complicado lutar contra o coração, mais ainda com a pressão dos amigos. Podemos dizer, então, que pouca escolha teve o primeiro personagem nos acontecimentos que se desenrolaram. Este personagem é um prestador de serviços, por isso paga-se para que o serviço seja prestado.


O amor, por assim dizer, começou no momento em que foram apresentados. E desde que o olhar do moço ingénuo pousou naquela coisa, nunca mais a sua cabeça pensou noutra coisa. Foi um desastre atrás do outro a partir daí. Foi um ciclo vicioso que ninguém viu começar, ninguém se importou, ninguém disse nada, e quando quiseram, tarde de mais.

O dinheiro que tinha, pouco, era para alimentar o amor. Era o seu único interesse, como são todos os amores, entre os apaixonados. Não posso dizer que o prestador de serviços não sentisse o mesmo amor. Não é verdade. Ele dava-se em cada encontro. Extinguia-se para alimentar o amor, sacrificava-se.


Porém, de outra forma não estaria a ser completamente sincero, não posso argumentar que um maço de tabaco tem, porventura, sentimentos. É demasiado filosófico, demasiado fantasioso.

O início do amor platónico já foi contado, o meio não tem grande interesse. Os cigarros morriam, um a um, e o sacrifício deles parecia aumentar cada vez mais o amor que ele sentia por eles. Eram a prova que todos os apaixonados precisam, todos os dias, de que são correspondidos. Era a água que regava a tal planta que é o amor. E por isso, através dos cigarros, o sujeito vivia, respirava, dormia.

O fim deste grande amor é digno da banda sonora mais melancólica que cada um encontrar (para mim a Ave Maria de Giulio Caccini).

Como todos os amores, este modificou as partes, uma mais que outra. Ao sujeito, alargou a laringe, aumentando o espaço da glote, ficando com uma voz mais radiofónica. A nicotina amarelou-lhe as mãos, o fumo escureceu os pulmões. Deu-se, assim, também ele, pouco a pouco, num ritual sem fim, de dar sem receber, ambos, um a um e peça por peça. Platónico disse eu há pouco, platónico sim. O sujeito, ele, ficou sem a possibilidade de voltar a construir a casa sempre que ela se ia. Sem casa, sem dinheiro para a comida, apenas para o amor. Nem o ideal de amor e uma cabana se poderia concretizar. Não concebo, não consigo conceber, amor mais platónico.



Até que chegou o dia que o amor trouxe as consequências. As previstas e as não previstas. Há sempre algo que podemos prever em cada decisão que tomamos, todavia, por mais espertos, mais inteligentes, quiçá videntes, a maior parte delas escapam-nos.

Um homem, por si só, não é de ferro. Então, houve o dia que teve, ele, de ir ao médico.

Como é óbvio, o teor da conversa não sei, sei apenas que a ordem foi para que o amor parasse. Foi para que arranjasse outro amor, um mais saudável para a mente e o corpo. O médico ordenou que deixasse os cigarros viver. Estranho uma decisão de cariz tão humanitário ter sido tão depressa recusada, vivamente por ele. Bem, não tão vivamente como outra pessoa conseguiria, mas o mais vivamente que ele conseguiu. Talvez os argumentos utilizados pelo médico não tivessem sido os melhores face à situação, não faço ideia.

O que ele me disse, antes de amar pela última vez, aqui, na esperança que noutro sítio fosse mais bem compreendido, foi que se não podia amar para que continuasse a viver, preferia morrer apaixonado, enamorado. Podem considerar irónico, mas ele disse que o amor dele era muito mais forte que qualquer outro, que fora de metáforas, os cigarros teriam sempre um espaço dentro de si. Literalmente, pelo cancro de pulmão esquerdo, bem perto do coração. Disse também, que, nem que quisesse, nunca o conseguiria fazer com qualquer namorada que tivesse, pelo que o amor que sentisse em qualquer altura nunca se iria materializar como o dele.

Penso que tem razão. Penso também que se o amor fosse um órgão, um membro, umas células alteradas, aliás, se as alterações que o amor nos traz, as suas emoções, as suas loucuras, se traduzissem num sinal, um daqueles que todos poderiam ver e dizer: olha aquele está apaixonado, não teria a mesma piada.


O amor é a demonstração que cada um de nós faz para o libertar ao mundo.

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